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por Nereide Michel em 27/12/2013

Por ter um trabalho autoral, a designer mineira conta com uma legião de fãs entre os jornalistas convidados para fazer a cobertura da semana de moda de sua terra. Ritual que todos cumprem com a maior felicidade: abrir espaço na movimentada agenda  do Minas Trend para fazer uma visita ao showroom da Mary Arantes. Onde são recepcionados com  mineirice cativante da anfitriã  que sempre reserva aos seus convidados surpresas deliciosas, como pão de queijo, o queijo em si, bolachinhas e  bolinhos caseiros.  Ah, tem licor de jabuticaba também!

Por isso, nada melhor do que ouvir – ou ler como num diário de confidências – a própria autora descrever suas coleções. A do Inverno 2014 vem costurada e arrematada com fortes lembranças do que aconteceu ao seu redor. E no seu interior. Vamos saber? (Nereide Michel)

Diz, escreve Mary Arantes:

]Confidência Mineira[

1968- Chego em BH  com 12 anos, incompletos, como diziam lá na roça, em meio ao caos de mudanças, passeatas e insatisfações. Lembro que era época do Beto Rockfeller e que era proibida de assistir esta novela em casa, entre tantas outras proibições pelo país.

1970- O povo vai às ruas lutar por dias melhores. Foi lançado o AI5 e o endurecimento da ditadura acontece. Exílios, voluntários ou não e muita, muita repressão.

2013- O povo vai às ruas novamente, a liberdade de expressão é nossa maior arma. Em meio ao caos das passeatas, a insatisfação, a espera de dias melhores.

A moda passa por uma de suas fases de maior dificuldade, não é mais feita só de glamour e passarela, como pensam. O chão de fábrica, sempre foi vida real.

2013- Clô se joga da janela de seu apartamento em SP. A moda fica sem uma de suas “arquitetas” e o mundo da moda nunca mais será o mesmo. Seu pulo foi o grito de todos nós.

Papaulo, da Clements Ribeiro vem a BH palestrar. Fala pausado, sem imagens coloridas, apenas ele e o palco, fala como um homem comum. Fala de acertos, fracassos, custos de se ter uma marca nos dias de hoje. Deixa um recado pra todos nós: se a moda não muda, mudo eu!

Tempo de reflexão e espera de novos dias, novos caminhos, novas formas de ser.

Fazer coleções com temas, que levam  até 4 meses para serem idealizados, estudados e internalizados, torna-se quase impossível. Mas em meio ao fazer desta coleção, tive o privilégio de visitar 5 estados do Brasil em apenas um mês, 3 deles em apenas uma semana. Todos os trabalhos envolviam moda, arte e artesanato. Em  Alagoas, me lancei na estrada em direção à  Ilha do Ferro. Foram 10 horas de viagem em busca do paraíso perdido em arte popular genuína.  Em Cuiabá, experimentei um Brasil com  um sabor totalmente novo, a cidade, de localização quase insular, me falou de coisas que ficam ali guardadas, quase intocadas, entre elas a paz da Chapada, a casa santuário da fada Louriza.  Em cada volta, trazia na bagagem o que não se pode comprar, a arte desse povo amado, a cor do barro, a bondade, gentileza e amabilidade de nossa gente. Cada coisa que aprendia, depositava no que fazia, e  em seguida, partia novamente. Naveguei pelo Velho Chico, dormi em pousadas com banheiros compartilhados, almocei em favelas onde casas desconhecidas me acolheram. Na hora do almoço à mesa, a dona da casa elevou à Deus suas preces e agradeceu por ter o que conosco partilhar. Voltava, e fazia mais um pedaço da coleção, depositava em cada fatia dela feita, a lágrima de agradecimento por estas pessoas, pela simplicidade, generosidade e acolhida.

Sempre soube que existem muitos Brasis, mas experimentar em tão pouco tempo, dialetos, cantares, musicalidade, bondade, energia, comida, cheiros e cores, foi a melhor pesquisa que poderia ter feito. Voltei inebriada com vivências  e oportunidades. É como se tudo já fosse sabido, mas não vivido, nessa intensidade.

Esta coleção carrega cenas de Penedo, o colorido das casinhas  de Piranhas,encarapitadas no morro, o amor de Jerônimo pela arte popular, a arte “corcunda” de Aberaldo, o canto de Vera e Zuleika, a poesia de Ruth Albernaz. Não me peçam pra dizer onde está cada referência, elas estão em toda parte e em grande parte de mim.

As cores da coleção são densas, vai desde a melancólica  e sofisticada combinação  de cinza com marrom, aos avinhados e arroxeados.

Em meio ao escuro, o vermelho, da batalha.  Ora alaranjado, ora intenso.

A brasilidade e  meu amor à nossa alegria de ser, falam mais alto na paleta mais colorida. O tecido, material base do nosso trabalho, faz labirintos, vai e volta, torce, retorce, escolhendo caminhos. Tece tramas, como sempre fez, artesanalmente.

O ouro acobreado é a grande descoberta dos banhos, assim como o novo color black.

Colares com bolas bordadas, nos remetem aos ateliês de costura, fios finos de linhas, agulhas e miçangas nos fazem lembrar do prazer único de se ter algo feito à mão. Pareço bater na mesma tecla, mesmo fio. É que continuo a acreditar no feito à mão como a grande arma contra o produzido em série.

As resinas vêm com acabamentos foscos, ora lixadas, ora com aspecto de seixos, pedras que se lapidam.  Feito seres humanos, inacabadas, sempre em construção. Noutra ponta, inspirada nos pingentes de lustres, colares surgem em contornos em fumê, com cores suaves internalizadas. As cores nos remetem a pedra ágata.

 O  colar conceito, bastidor, foi escolhido como símbolo desta coleção. Dele, descem  longas franjas de barbante, nosso simples cordão, quase como um rio, água que escorre. O bastidor como  símbolo de algo que cinge, a franja como liberdade de criação.

E enquanto outra viagem não acontece, fico por aqui tecendo fios, feito uma Penélope moderna que tudo desfia, pra nunca ter que acabar.”