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por Nereide Michel em 09/05/2015

Mary Arantes sempre teve os pés no chão. Um pouco distante, com certeza, do significado “bruto” desta frase que enfatiza a razão sobre a emoção – projetar criteriosamente e não assumir riscos. Os pés no chão de Mary Arantes têm tudo a ver com a sua forte ligação com as raízes culturais de sua terra e de sua gente assim que começa a traçar contornos de uma coleção. Raízes  que lhe permitem aprofundar-se nos sentimentos e nos estudos para conceituar as peças. Mas, ao mesmo tempo, são elas que a unem ao tronco, aos galhos, às folhas e às flores da árvore que, ao serem balançadas pelo vento flutuam, ganham vida e seguem seu destino.

“Devagar com o andor que o santo é de barro” é o tema do Verão/16 de Mary Design e nele constata-se que as folhas e flores desprenderam-se da árvore-mãe mineira e foram buscar em outras paragens apoios para definir a proposta da coleção. A fé comum que une a todos os povos, independente de onde estão e quando viveram,  na crença de que existe “vida” além da vivida na materialidade. Mary teceu seus fios e descobriu a força de uma fé unificadora de culturas ao observar como a correlação de símbolos e liturgias são elos que fortalecem a corrente de que se somos diferentes fisicamente – afinal, temos que nos identificar dentro de uma categoria maior – a dos seres humanos – espiritualmente somos alimentados pela mesma necessidade de ultrapassar as barreiras limitadoras que fazem acreditar que só é real o que se pode tocar com as mãos.

“Devagar com o andor que o santo é de barro” é a fé de Mary Arantes no seu trabalho. E ao contrário do provérbio, suas criações, embora embaladas pela sensibilidade e emoção, não são “de barro”. São fortes e resistentes.

E as raízes? Continuam fincadas no solo de sua terra. Pois, segundo as descobertas da designer, se em um museu mexicano um entalhe de madeira comporta no mesmo tabuleiro anjos, santos, frutas e bichos, no mineiro vilarejo Bichinho em uma mesma peça convivem o bem e o mal, o claro e o escuro, a serpente, Eva, Adão e o paraíso. Qualquer semelhança não é mera coincidência. É uma questão de fé!

Como acontece em todas as coleções Mary Design ela explica-se por si só. Pelas palavras de quem a assina. E elas dizem que…

“ O termo “devagar com o andor que o santo é de barro” certamente surgiu numa procissão, onde o padre invocou aos fiéis, um ritmo mais lento do caminhar com o andor. Hoje é usado como provérbio, com conotação de menos pressa, de se carregar algo frágil. Volto a usá-lo com o real sentido, o de que devemos carregar nossos santos e crenças com cuidado e atenção, para que não se quebrem.

Precisamos resgatar o sentimento do sagrado.

As religiões são hoje no mundo grande causa de guerras, falta de paz e intolerância. Quão valiosas seriam as religiões, se nos déssemos conta de que cada religião é uma forma de andar devagar, cuidar do santo de cada um. A busca é sempre a mesma: o acesso ao divino e sua manifestação em nossas vidas. As religiões são verdadeiros veículos, os rituais, a indumentária, tantas vezes rica e colorida, os cânticos, carregam em si o poder de nos transportar a outra dimensão. Penso no cuidado que os monges budistas colocam em cada detalhe de seus templos. O incenso aceso com cautela, as velas que não se apagam com o sopro, os mantras e os malas que seguram, deslizando conta por conta, devagar, mantendo aberto o acesso ao Eu Superior. Vejo os rituais da Igreja Católica e o sacerdote, que cada vez que passa em frente do altar, se ajoelha, reconhecendo ali a presença de Deus. As Mães e Filhos de Santo no Candomblé, que ao acordarem seguram as contas em suas mãos dando boas vindas a seus Orixás e convidando-os a acompanhá-los naquele dia. Ao se recolherem no fim do dia, preparam com zelo o lugar de descanso dos orixás e ali deitam suas contas.

São muitas as religiões, os rituais. Diversas, as maneiras de se manter viva e ativa a voz de Deus. Um passeio por elas nos mostra a existência de símbolos como os peixes, cruzes diversas, serpentes, falos, espelhos, máscaras, tantos destes, presentes em varias religiões, mas carregando significados diferentes. Em contrapartida vemos ícones diferentes servindo de veiculo para valores comuns a varias religiões. Penso que deve existir uma conexão entre religião e acessórios… os malas, rosários, terços e escapulários, não deixam de ser colares.

Quantas vezes viajamos e adquirimos em nossa viagem: uma roupa, uma pulseira, um anel, um amuleto, algo que nos remeta ao lugar que visitamos, numa tentativa de prolongar a viagem ou de trazer um pedaço dela conosco. Esses objetos, trazem consigo as qualidades do lugar, da experiência que vivemos ali. Nas religiões, os objetos tornam-se símbolos que evocam as qualidades das imagens reafirmando suas mensagens. Acredito que os acessórios e os rituais religiosos servem de pontes ao acesso do divino que há em mim e que me liga ao resto do mundo.

Na coleção, na busca pela mescla das religiões, lancei mão da mistura de materiais, dos bordados que se matizam, muitas vezes em cores e efeitos propositalmente desordenados. É comum num mesmo adorno, a presença de símbolos de seitas diversas, como a sugerir a quem for usar, uma partilha, uma comunhão com o outro. Diversas vezes no estudo para esta coleção, pensava nos altares mexicanos, carregados de flores, comidas e cores e nos altares hinduístas, budistas, e no meu pensamento bastaria trocar a imagem do santo adorado, Guadalupe por Buda. No museu Dolores Olmedo no México, um entalhe em madeira, onde anjos, santos, frutas e bichos, faziam parte do mesmo tabuleiro, me levou ao vilarejo Bichinho, próximo de Tiradentes. Lá em Bichinho, na mesma peça também convivem, o bem e o mal, o claro e o escuro, a serpente, Eva, Adão e o paraíso. Incluir os artesãos de Bichinho nesta coleção foi muito significativo. Corações confeccionados em folha de flandres, com pintura em esmalte, carregam junto o sagrado e o artesanal. Os bordados, alguns deles executados por associações como a das bordadeiras de Botumirim (MG), carregam, além dessa mistura, o traço da nossa marca, artesanal, sempre em busca pelo que leva a mão do homem.

Um colar com um olho bordado, um medalhão que traz uma mão e um coração, foram inspirados nos ex-votos, na oferenda do testemunho de um milagre. Os anéis vêm com caráter primitivo, como se tivessem sido encontrados em sítios arqueológicos. Têm a superfície irregular, inacabada, levemente tortuosa, sem a pretensão de uma modelagem perfeita, aliás, primam pela imperfeição. Os acabamentos envelhecidos, ouro velho e prata velha, são os eleitos desta estação e banham a superfície das bijus. Nos colares, a mistura se dá na comunhão de materiais aparentemente díspares. A pedra busca a madeira, a madeira acolhe o cristal, o negro a transparência. O caráter étnico deixa-se mostrar relevantemente. Os brincos artesanais, levemente agigantados, são apostas da estação, neles a brincadeira de materiais, cores e banhos diversificados em uma mesma peçase faz presente.

Lançada recentemente no mercado, uma linha de tiras bordadas religiosas sacramentam pequenos estandartes da nossa linha casa. Os patuás não foram esquecidos e trazem na miniatura de sua modelagem, a ideia de um micro estandarte. O especial brinco de pena de pavão, os pingentes de flor de Lótus, a máscara Nô, muito conhecida no teatro japonês, as mandalas e seu significado de unicidade e organização, foram executados pelo método de marchetaria em madeira, pelo mestre Maqueson, e poderão ser usados como relíquias modernas, tamanho o preciosismo.

As bijus  são o meu andor. Vou devagar, com muito cuidado, na certeza de que carregam não só o meu santo, mas o seu e a alma secreta do mundo.”

Mary Arantes

 

 

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