por Nereide Michel em 29/05/2014
A tênue linha que separa a razão da loucura, a realidade do sonho, o concreto do abstrato já foi ultrapassada pela sensibilidade de designers brasileiros, como os curitibanos Alexandre Linhares e Enesoe Chan e a mineira Mary Arantes, que em coleções atemporais propuseram mais do que roupas e acessórios. De “ comum acordo”, mesmo um desconhecendo o trabalho do outro, propuseram momentos de reflexão diante do que nos é apresentado no dia a dia. Loucura para alguns pode ser confundida com coragem para romper padrões – pois, “louco é quem é feliz”, canta Ney Matogrosso, mesmo que a felicidade seja resultado de um processo de alienação ao que se passa ao redor.
“Dizem que sou louco por pensar assim/Se eu sou muito louco por eu ser feliz/Mas louco é quem me diz/E não é feliz, não é feliz.” (Ney Matogrosso, palavras e música)
A moda, feita por mãos guiadas por mentes reflexivas, tem esta incumbência: alertar, mostrar, provocar reação, dissipar barreiras que não deixem o olhar captar o que existe adiante ou dentro de cada um de nós! (Nereide Michel)
ALEXANDRE LINHARES
COLEÇÃO CAMISA DE FORÇA, PARANÁ BUSINESS COLLECTION, 2012
O desfile teve como trilha sonora a voz de Alexandre Linhares dizendo o que ele pensa de quem se recusa a não pensar sobre o que sente e o que faz.
“Me dita, recita, diga o que quer que eu faça. Quando você meditar sobre o que você me disse e quando você me ditar o que você pensa, talvez eu já me esqueça, porque diante de tudo, talvez, eu não precise mais pensar.” Começou assim e concluiu com um apelo/alerta:
“Por favor, fuja das ideias prontas. Se você criar o caminho, nunca estará perdido. Se você for por onde eles apontam, estará nas mãos de alguém que decide o seu caminho e se o apito estiver na sua boca, é você quem decide o tempo. Deve ser mais importante o que seu espelho diz, o que sua cabeça interpreta, do que a opinião deles. Eles só não querem que você pense. Mas se o que eles dizem for mais importante pra você… Eles não querem que você pense!”
A coleção buscou contestar valores “imaculados” da sociedade, que nos atam a um “ideal de sociedade saudável”, o qual nos amarra como uma camisa de força – “loucos” são os que tentam escapar dela. Será?
Para compor a coleção, Alexandre Linhares, através das redes sociais, lançou uma campanha pedindo para que, quem se sentisse confortável, lhe enviasse foto de suas genitálias de forma anônima, numa busca pela expressão bruta e pura, sem amarras e sem rosto. O vestido Vagina, em seda pura, que integra a coleção Camisa de Força, foi bordado, pentelho por pentelho, em linha de algodão. É produto desta “convocação” para cada um ser o que é, sem disfarces e sem panos para cobrir seus pensamentos e atos.
ENESOE CHAN
COLEÇÃO LOUCURA, CURITIBA FASHION ART, 2004
Quem é o louco? Quem está escondido por paredes hospitalares, quem cuida deles, quem está nas ruas? A contestação de Enesoe Chan ganhou argumentos sob a forma de roupas masculinas – sua especialidade – nas quais detalhes, arremates, vazados e cores deram pistas de que cada um tem sim um pouco ou muito de loucura.
Enesoe Chan lembra que a inspiração para a coleção surgiu quando leu uma matéria na Gazeta do Povo, de Curitiba, sobre o livro Canto dos Malditos, de Austregésilo Carrano Bueno. Nele o autor narra sua experiência ao passar anos em um hospital psiquiátrico, internado pelos pais, por que descobriram que ele fumava maconha. O livro também serviu de enredo ao filme O Bicho de Sete Cabeças, dirigido por Laís Bodanzky e com Rodrigo Santoro vivendo Austregésilo.
A coleção foi desenvolvida em cinco partes divididas por cores, que representavam a camisa de força (tons neutros), a roupa de cama de hospital (azul, verde e rosa bebê), os magistrados que tem o poder para decidir quem são considerados os loucos na sociedade para enviá-los aos hospícios (preto), a classe médica (branco) e a sociedade nebulosa, por onde transitam magistrados e médicos (cinza).
Segundo Chan, “ a coleção foi exageradamente cheia de amarrações, vazados transparentes com PVC – uma referência às dosagens de comprimidos – com o propósito de questionar quem verdadeiramente eram e são os loucos da e na sociedade. Conclusão? “TODOS… eu, você, ele, elas, nós, vocês, eles … Poucos muito loucos … Muitos pouco loucos … E outros somente loucos …”, arremata o designer.
MARY ARANTES
COLEÇÃO “Ó PEDAÇO DE MIM” , MINAS TREND, 2014
“Maluco Beleza”, Raul Seixas, “Pedaço de Mim”, Chico Buarque de Holanda, como trilha sonora para abrigar um coração acorrentado – existe algo mais contrastante entre o pulsar livre e a mente reprimida? A emoção presa pelas amarras da razão. Elos, que mesmo grudados uns aos outros, não cessam de buscar o sem-limite.
Os acessórios Mary Design assumiram o comando da passarela com a sua estética megalomaníaca, avantajada, de dimensões e contornos duvidosos – todos loucamente planejados. O excesso como fardo, mas também como liberdade. “Liberdade de criação”, como define Mary Arantes, que assim se apresenta e apresenta a sua coleção:
“Louca eu? Melhor seria pensarmos que temos telhados de vidro. Eis aqui minhas pedras – contas coloridas, muranos, cerâmicas, ora lisas, ora floridas. Contos e contas que carreguei nestes mais de 30 anos de viagem. Fiz deles um grande acervo, muitas vezes engavetados em lugares escuros. Ofereço-as nem sempre na orelha, como brinco, mas brincando entre esses dois mundos em que vivemos: o real e o imaginário. São peças que construí ao longo de alguns meses, trazia para fora o que estava dentro. Parte dos bichos sendo expulsos, expurgados em objetos, muitos deles únicos, irrepetíveis , livres de qualquer julgamento da minha parte.”